quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Um visão de Portugal

Segunda-feira passada, a meio da tarde, faço a A-6, em direcção a Espanha e na companhia de uma amiga estrangeira; quarta-feira de manhã, refaço o mesmo percurso, em sentido inverso, rumo a Lisboa.

Tanto para lá como para cá, é uma auto-estrada luxuosa e fantasma. Em contrapartida, numa breve incursão pela estrada nacional, entre Arraiolos e 
Borba, vamos encontrar um trânsito cerrado, composto esmagadoramente por camiões de mercadorias espanhóis. Vinda de um país onde as auto-estradas estão sempre cheias, ela está espantada com o que vê: 


- É sempre assim, esta auto-estrada?


- Assim, como? 


- Deserta, magnífica, sem trânsito? 


- É, é sempre assim. 


- Todos os dias? 


- Todos, menos ao domingo, que sempre tem mais gente. 


- Mas, se não há trânsito, porque a fizeram? 


- Porque havia dinheiro para gastar dos Fundos Europeus, e porque diziam que o desenvolvimento era isto. 


- E têm mais auto-estradas destas? 


- Várias e ainda temos outras em construção: só de Lisboa para o Porto, vamos ficar com três. Entre S. Paulo e o Rio de Janeiro, por exemplo, não há nenhuma: só uns quilómetros à saída de S. Paulo e outros à chegada ao Rio. Nós vamos ter três entre o Porto e Lisboa: é a aposta no automóvel, na poupança de energia, nos acordos de Quioto, etc. - respondi, rindo-me. 


- E, já agora, porque é que a auto-estrada está deserta e a estrada nacional está cheia de camiões? 


- Porque assim não pagam portagem. 


- E porque são quase todos espanhóis? 


- Vêm trazer-nos comida. 


- Mas vocês não têm agricultura? 


- Não: a Europa paga-nos para não ter. 
E os nossos agricultores dizem que produzir não é rentável. 
- Mas para os espanhóis é? 
- Pelos vistos... 

Ela ficou a pensar um pouco e voltou à carga: 
- Mas porque não investem antes no comboio? 
- Investimos, mas não resultou. 
- Não resultou, como? 
- Houve aí uns experts que gastaram uma fortuna a modernizar a linha Lisboa-Porto, com comboios pendulares e tudo, mas não resultou. 
- Mas porquê? 
- Olha, é assim: a maior parte do tempo, o comboio não 'pendula'; e, quando 'pendula', enjoa de morte. Não há sinal de telemóvel nem Internet, não há restaurante, há apenas um bar infecto e, de facto, o único sinal de 'modernidade' foi proibirem de fumar em qualquer espaço do comboio. Por isso, as pessoas preferem ir de carro e a companhia ferroviária do Estado perde centenas de milhões todos os anos. 
- E gastaram nisso uma fortuna? 
- Gastámos. E a única coisa que se conseguiu foi tirar 25 minutos às três horas e meia que demorava a viagem há cinquenta anos... 
- Estás a brincar comigo! 
- Não, estou a falar a sério! 
- E o que fizeram a esses incompetentes? 
- Nada. Ou melhor, agora vão dar-lhes uma nova oportunidade, que é encherem o país de TGV: Porto-Lisboa, Porto-Vigo, Madrid-Lisboa.. . e ainda há umas ameaças de fazerem outro no Algarve e outro no Centro. 
- Mas que tamanho tem Portugal, de cima a baixo? 
- Do ponto mais a norte ao ponto mais a sul, 561 km. 

Ela ficou a olhar para mim, sem saber se era para acreditar ou não. 
- Mas, ao menos, o TGV vai directo de Lisboa ao Porto? 
- Não, pára em várias estações: de cima para baixo e se a memória não me falha, pára em Aveiro, para os compensar por não arrancarmos já com o TGV deles para Salamanca; depois, pára em Coimbra para não ofender o prof. Vital Moreira, que é muito importante lá; a seguir, pára numa aldeia chamada Ota, para os compensar por não terem feito lá o novo aeroporto de Lisboa; depois, pára em Alcochete, a sul de Lisboa, onde ficará o futuro aeroporto; e, finalmente, pára em Lisboa, em duas estações. 
- Como: então o TGV vem do Norte, ultrapassa Lisboa pelo sul, e depois volta para trás e entra em Lisboa? 
- Isso mesmo. 
- E como entra em Lisboa? 
- Por uma nova ponte que vão fazer. 
- Uma ponte ferroviária? 
- E rodoviária também: vai trazer mais uns vinte ou trinta mil carros todos os dias para Lisboa. 
- Mas isso é o caos, Lisboa já está congestionada de carros! 
- Pois é. 
- E, então? 
- Então, nada. São os especialistas que decidiram assim. 

Ela ficou pensativa outra vez. Manifestamente, o assunto estava a fasciná-la. 
- E, desculpa lá, esse TGV para Madrid vai ter passageiros? Se a auto-estrada está deserta... 
- Não, não vai ter. 
- Não vai? Então, vai ser uma ruína! 
- Não, é preciso distinguir: para as empresas que o vão construir e para os bancos que o vão capitalizar, vai ser um negócio fantástico! A exploração é que vai ser uma ruína, aliás, já admitida pelo Governo porque, de facto, nem os especialistas conseguem encontrar passageiros que cheguem para o justificar. 
- E quem paga os prejuízos da exploração: as empresas construtoras? 
- Naaaão! Quem paga são os contribuintes! Aqui a regra é essa! 
- E vocês não despedem o Governo? 
- Talvez, mas não serve de muito: quem assinou os acordos para o TGV com Espanha foi a oposição, quando era governo... 
- Que país o vosso! Mas qual é o argumento dos governos para fazerem um TGV que já sabem que vai perder dinheiro? 
- Dizem que não podemos ficar fora da Rede Europeia de Alta Velocidade. 
- O que é isso? Ir em TGV de Lisboa a Helsínquia? 
- A Helsínquia, não, porque os países escandinavos não têm TGV. 
- Como? Então, os países mais evoluídos da Europa não têm TGV e vocês têm de ter? 
- É, dizem que assim entramos mais depressa na modernidade. 

Fizemos mais uns quilómetros de deserto rodoviário de luxo, até que ela pareceu lembrar-se de qualquer coisa que tinha ficado para trás: 
- E esse novo aeroporto de que falaste, é o quê? 
- O novo aeroporto internacional de Lisboa, do lado de lá do rio e a uns 50 quilómetros de Lisboa. 
- Mas vocês vão fechar este aeroporto que é um luxo, quase no centro da cidade, e fazer um novo? 
- É isso mesmo. Dizem que este está saturado. 
- Não me pareceu nada... 
- Porque não está: cada vez tem menos voos e só este ano a TAP vai cancelar cerca de 20.000. O que está a crescer são os voos das low-cost, que, aliás, estão a liquidar a TAP. 
- Mas, então, porque não fazem como se faz em todo o lado, que é deixar as companhias de linha no aeroporto principal e chutar as low-cost para um pequeno aeroporto de periferia? Não têm nenhum disponível? 
- Temos vários. Mas os especialistas dizem que o novo aeroporto vai ser um hub ibérico, fazendo a trasfega de todos os voos da América do Sul para a Europa: um sucesso garantido. 
- E tu acreditas nisso? 
- Eu acredito em tudo e não acredito em nada. Olha ali ao fundo: sabes o que é aquilo? 
- Um lago enorme! Extraordinário! 
- Não: é a barragem de Alqueva, a maior da Europa. 
- Ena! Deve produzir energia para meio país! 
- Praticamente zero. 
- A sério? Mas, ao menos, não vos faltará água para beber! 
- A água não é potável: já vem contaminada de Espanha. 
- Já não sei se estás a gozar comigo ou não, mas, se não serve para beber, serve para regar - ou nem isso? 
- Servir, serve, mas vai demorar vinte ou mais anos até instalarem o perímetro de rega, porque, como te disse, aqui acredita-se que a agricultura não tem futuro: antes, porque não havia água; agora, porque há água a mais. - Estás a dizer-me que fizeram a maior barragem da Europa e não serve para nada? 
- Vai servir para regar campos de golfe e urbanizações turísticas, que é o que nós fazemos mais e melhor. 

Apesar do sol de frente, impiedoso, ela tirou os óculos escuros e virou-se para me olhar bem de frente: 
- Desculpa lá a última pergunta: vocês são doidos ou são ricos? 
- Antes, éramos só doidos e fizemos algumas coisas notáveis por esse mundo fora; depois, disseram-nos que afinal éramos ricos e desatámos a fazer todas as asneiras possíveis cá dentro; em breve, voltaremos a ser pobres e enlouqueceremos de vez. 

Ela voltou a colocar os óculos de sol e a recostar-se para trás no assento. E suspirou: 
- Bem, uma coisa posso dizer: há poucos países tão agradáveis para viajar como Portugal! Olha-me só para esta auto-estrada sem ninguém!...


Miguel Sousa Tavares

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